Jena, 28 de Julho de 1902
Forsteweg 29
Prezado colega,
O Senhor escreveu que uma classe que consiste em mais de um objeto não é, em primeiro lugar, um objeto, mas muitos. Embora uma classe ordinária forme, na verdade, uma totalidade, certas classes não formam totalidades, mas são meras multiplicidades e surge disto uma contradição quando as consideramos como unidades. O Senhor não pretende proibir, em geral, “ϕ(ε’ϕ(ε))”, mas apenas quando “ε’ϕ(ε)” não denota um objeto real. Penso que o Senhor já deve proibir “ε’ϕ(ε)”. Um nome de classe que não é não-referencial [bedeutungslos], na minha opinião, denota um objeto. Quando afirmamos algo de uma multiplicidade ou de um conjunto, tratamo-los como objetos. Um nome de classe pode aparecer como o sujeito de uma proposição singular e, portanto, tem o caráter de um nome próprio, por exemplo, “a classe dos números primos compreende infinitos objetos”. Podemos muito bem distinguir os seguintes casos:
1. “Sócrates e Platão são filósofos”. Temos aqui dois pensamentos: Sócrates é um filósofo e Platão é um filósofo. Estes dois pensamentos são reduzidos em uma proposição apenas por comodidade linguística. Logicamente, Sócrates e Platão não tem de ser concebido como o sujeito do qual filósofo tem de ser predicado.
2. “Bunsen e Kirchhoff estabeleceram a análise espectral”. Devemos considerar aqui Bunsen e Kirchhoff como uma totalidade. “Os romanos conquistaram os gauleses” tem de ser concebida da mesma maneira. Aqui, os romanos são o povo romano, unido pelos costumes, pela educação e pelas leis. Neste sentido, um exército é uma totalidade, um sistema. Consideramos todo corpo físico como uma totalidade, um sistema que consiste de partes.
3. “A classe dos números primos compreende infinitos objetos”. Aqui, a classe dos números primos é um objeto, mas não é uma totalidade cujas partes seriam números primos. Eu não gostaria de dizer que esta classe consiste de números primos. Este caso distingui-se dos anteriores dessa maneira: em primeiro lugar, uma totalidade, um sistema está sempre unido por relações e estas lhe são essenciais. Um exército é destruído, se é perdida a sua unidade, mesmo que os soldados individuais permaneçam vivos. Por outro lado, as relações, nas quais os objetos que pertencem à classe têm uns com os outros, são indiferentes para a mesma. Em segundo lugar, se nos é dada uma totalidade, ainda não é determinado quais de suas partes têm de ser imaginadas. Considero como partes de um regimento os batalhões, as companhias ou os soldados individuais e considero como partes de um monte de areia [Sandhaufens] ou os grãos de areia ou os átomos de silício e de oxigênio. Se, por outro lado, uma classe nos é dada, então é determinado que objetos pertencem a ela. Somente números primos pertencem à classe dos números primos, mas não a classe dos números primos da forma 4n+1, pois esta classe não um número primo. Pertence à classe das companhias de um dado regimento apenas companhias, mas não os soldados individuais. Para totalidades ou sistemas, temos a proposição que uma parte de uma parte é uma parte de um todo. Esta proposição não é válida para classes a respeito dos objetos que pertencem a elas. A relação de uma companhia a uma classe de companhias é totalmente diferente da relação desta companhia ao regimento do qual ela é parte. Os objetos que pertencem a uma classe podem formar, ao mesmo tempo, um sistema. Todavia, o sistema e a classe têm de ser sempre distinguidos. A classe dos átomos que formam a cadeira na qual estou sentado não é a própria cadeira. Uma totalidade cujas partes são materiais é também material; por outro lado, não gostaria de designar uma classe como um objeto físico, mas como um objeto lógico. O Senhor deseja então, parece-me, admitir apenas sistemas, mas não deseja admitir as classes. Eu mesmo relutei durante muito tempo em reconhecer os percursos de valores e, consequentemente, as classes, mas não vi qualquer outra possibilidade de fundamentar logicamente a aritmética. Trata-se da questão: como apreendemos [fassen] objetos lógicos? Não encontrei qualquer outra resposta que não esta: apreendemo-los como extensões de conceitos ou, de uma maneira mais geral, como percurso de valores de funções. Nunca neguei que isto estivesse conectado a dificuldades e estas se tornaram ainda maiores devido à sua descoberta da contradição; mas teríamos outros caminhos? O Senhor escreveu na nota no fim da § 1 de seu artigo Sur la logique des relations: “O número cardinal de uma classe u seria a classe das classes similares a u” [“Le nombre cardinal d’une classe u serait la classe des classe semblables à u”]. Isto coincide completamente com a minha definição, mas não podemos considerar as classes como sistemas, pois o portador [Träger] do número não é, como indiquei em meu Grundlagen der Arithmetik um sistema, um agregado, uma totalidade que consiste de partes, mas sim um conceito para o qual podemos tomar a sua extensão. Também poderíamos tentar o seguinte expediente que sugeri em meu Grundlagen der Arithmetik: se tivermos uma relação Φ(ξ,ζ) para a qual as seguintes proposições são válidas: (1) de Φ(a,b) se segue Φ(b,a); (2) de Φ(a,b) e Φ(b,c) se segue Φ(a,c); então podemos transformar esta relação em uma igualdade (identidade) e ao invés de escrever Φ(a,b) podemos escrever §a=§b. Se, por exemplo, a relação é a relação de similaridade geométrica, então ao invés de dizer “a é semelhante a b” podemos dizer “a forma de a é a mesma que a forma de b”. Isto é o que o Senhor chamou de “definição por abstração”. Mas, as dificuldades aqui são as mesmas que aquelas encontradas na transformação de uma generalidade de uma identidade em uma identidade de percurso de valores.
A dificuldade na proposição “uma função nunca ocorre na posição de sujeito” é somente aparente, ocasionada pela imprecisão da expressão linguística; pois as palavras “função” e “conceito” têm de ser, com efeito, rejeitadas de um ponto lógico de vista. Tais palavras já deveriam ser nomes de funções de segunda ordem; mas elas se apresentam, linguisticamente, como nomes de funções de primeira ordem. Consequentemente, não tem de ser surpreendente que encontramos dificuldades com isto. Tratei disto, acredito, em meu artigo sobre conceito e objeto. Se quisermos expressar-nos de uma maneira exata, resta-nos somente falar de palavras e símbolos. Podemos analisar a proposição “3 é um número primo” em “3” e “é número primo”. Estas partes são essencialmente diferentes: a primeira é completa em si mesma, a segunda necessita de complementação. Podemos, da mesma maneira, analisar a proposição “4 é um número quadrado” em “4” e “é um número quadrado”. Agora, podemos combinar, de maneira significativa, a parte completa da primeira proposição com a parte que necessita de complementação da segunda proposição (que a proposição é falsa é uma outra questão); mas não podemos combinar, de maneira significativa, as duas partes completas; estas não estão ligadas e tampouco podemos colocar, de maneira significativa, “é um número quadrado” no lugar de “3” na primeira proposição. Deve corresponder a esta distinção nos símbolos uma distinção no domínio das referências, embora não seja possível falar disto sem transformar aquilo que precisa de complementação em algo completo e, assim, sem falsificar, com efeito, a situação. Já fazemos isto quando dizemos “a referência de `é um número quadrado”’. Portanto, as palavras “é um número quadrado” não são não-referenciais. A análise da proposição corresponde a uma análise do pensamento e isto, novamente, corresponde a algo no domínio das referências e eu gostaria de chamar isto de um fato lógico primitivo. É precisamente por isso que uma definição própria é impossível.
Recebi ontem sua carta do dia 24. Estou satisfeito que o Senhor se ocupou, pormenorizadamente, com meus escritos e que o Senhor expressou, para mim, suas dúvidas. Infelizmente, ainda não tive nem tempo, nem energia para responder a sua carta tão rápido quanto eu desejava. Não queria retardar o envio desta carta, por isso estou adiando minha resposta de sua última carta. Por favor, não deixe que isto lhe impeça de apresentar-me suas dúvidas.
Meus sinceros cumprimentos
De seu devoto
G. Frege.